Joana – Relato de Vivência e Superação de Violência Doméstica

por Mª Aparecida Costa

Em 2019 o Brasil registrou um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em comparação com 2018. Foram 1.314 mulheres mortas apenas pelo fato de serem mulheres. Em  média tivemos uma mulher assassinada a cada 7 horas em nosso pais e 71% dos crimes são cometidos por atuais ou ex-companheiros.

Dados do Monitor da Violência apontam que os Estados de Alagoas e Acre são os que detém a maior taxa de feminicídios no País.

A violência continua sendo um dos principais obstáculos para o empoderamento das mulheres e a efetiva igualdade entre homens e mulheres.

No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher devemos nos parabenizar pela luta e avanços, mas temos que reconhecer que ainda há muito o que fazer. É necessário fortalecer ações de prevenção de violência contra a mulher e proteção mais eficazes para mulheres ameaçadas.

E em meio à estas ações recebemos o depoimento de Joana, vítima de vários tipos de violência ao longo da vida, que pretende com sua história inspirar outras mulheres a denunciar, pedir ajuda, reaprender a viver e ser feliz!

Joana nos diz:

“Nasci e cresci numa família grande, avós, tios, primos por parte de pai e mãe, almoços de domingo, muita união e amor. Eu e minha irmã, um ano mais nova que eu, crescemos assistindo brigas entre meus pais, agressões físicas e verbais. Meu pai estava envolvido em corrida de cavalo, nos finais de semana ficava num bar jogando e bebendo, minha mãe nervosa, o agredia.

Eu e minha irmã devíamos ter entre oito e nove anos quando num domingo, meu pai chegou do bar bêbado, minha mãe amarrou com cinto cada uma nossas mãos onde estava meu pai, jogou álcool nele e quando ia riscar o fósforo minha irmã conseguiu se soltar e empurrou-a, nos salvando. Minha mãe vivia se mudando de casa com vergonha dos vizinhos.

Imagem de Lorri Lang por Pixabay

Certa vez meu pai ganhou um bom dinheiro no jogo e nos deu uma boa vida – brinquedos, roupas novas toda semana, empregadas, carro e quando eu tinha uns 18 anos, época de vestibular, meu pai perdeu tudo que tinha, faltou dinheiro até pra alimentação.

Fui trabalhar e depois minha irmã também, paguei minha faculdade, meu curso de inglês que eu já fazia, meu enxoval, enfim a partir daí nunca mais ninguém pagou nada pra mim, nem marido. Eu e minha irmã seguimos nossas vidas, como sempre falei meu pai perdeu o que era dele e não meu.

Minha mãe se tornou uma pessoa traumatizada, rancorosa pra vida. Ela esperou que nos casássemos para se separar do meu pai, casou informalmente mais 2 vezes. Meu pai nunca se casou novamente, morou maior parte com minha irmã e comigo também, morreu amando minha mãe.

Imagem de Free-Photos por Pixabay

Conheci meu falecido ex-marido aos 11 anos, ele era filho de uma amiga da minha mãe. Aos 12 anos começamos a namorar, namorinho de criança, nos víamos as vezes, na adolescência foi fortalecendo e era um grande amor. A casa ao lado da dele morava outra amiga da minha mãe e da minha sogra, minha irmã começou namorar o filho dela pouco depois e são casados até hoje.

Quando eu tinha uns 15 / 16 anos um amigo dele que gostava de mim me contou que ele usava bala (droga que os jovens usavam na época, vendia na farmácia, não sei explicar o que era), ignorei acho que pela inocência. Tempo depois, soube que ele usava outros tipos de drogas.

Terminei o namoro, eu era muito certinha, e sofri muito e ele também, porque a gente se amava muito (mas nunca deixei de flertar com outros rapazes 😊). Quando eu tinha uns 18 anos ele me procurou, disse que não usava mais droga, pediu pra voltar a namorar comigo, acreditei e aceitei, ficamos logo noivos e sonhando com casamento.

Imagem de S. Hermann & F. Richter por Pixabay

Ele fazia faculdade de Direito, ficou 10 anos, trancava e voltava e nunca se formou. O pai dele deu o primeiro carro quando ele tinha 18 anos, pagava o seguro e trocava os carros também. Meu ex não parava em emprego, trabalhava 3 meses e fazia acordo para sair. Eu fazia faculdade de Direito, aos 22 anos casei e tive que parar o curso.

Mas antes de casar aconteceu o pior!!! Certa noite estávamos na casa dele com o meu sogro e entraram 3 rapazes na faixa de 20 anos armados para assaltar. Gritavam agressivos que queriam jóias e dinheiro, nos levaram pro andar de cima da casa, tocaram o terror, meu sogro recém operado do coração.

Deixaram meu noivo e sogro amarrados e trancados no quarto do casal, me deram coronhada no peito e circularam comigo pela casa amarrada pra eu mostrar o cofre, só que não tinha cofre.

O que parecia ser o chefe desceu comigo e num pequeno quarto que tinha na parte de baixo da casa me estuprou (não consigo pronunciar esta palavra ainda, falo sinônimo).

Subiu comigo, outro desceu e fez a mesma coisa e me levou para o andar de cima. Colocaram-me deitada na cama do quarto do meu noivo, só de calça jeans sem blusa, com os seios de fora, o terceiro bandido não abusou de mim, pegou uma toalha de rosto e jogou em cima dos meus seios para cobrir.

Imagem de Nino Carè por Pixabay

Meu noivo quando ouviu o barulho de carro saindo, gritou por socorro e 3 meninos que passavam pularam o portão que era baixinho, entraram na casa, desamarraram meu noivo que desamarrou meu sogro. Os meninos foram ao quarto ao lado e me viram sem blusa. Meu noivo agradeceu e pediu pra eles saírem, me soltou e chamou a policia. Corri pro banheiro pra tomar banho, me sentia imunda.

Minha sogra que estava passeando com o cachorrinho na casa de uma amiga próxima chegou logo, entrou no banheiro para ver como eu estava mas não falou nada comigo, entrou e saiu, nem apoio me deu, me senti culpada.

Meu noivo me retirou logo da casa, fomos para um Motel, para me mostrar que nada mudou pra ele, que eu continuava a mesma, transamos mas foi pior, me senti mal. Quando a policia chegou à casa eu e ele não estávamos lá, meu sogro que contou para os policiais e tinha jornalistas também, as 3 crianças contaram para jornalista que me encontraram sem blusa porque no dia seguinte, na segunda, saiu a reportagem no jornal e mencionou que os meninos me encontraram com os seios de fora, uma tia leu, me perguntou e neguei.

Imagem de Alexas_Fotos por Pixabay

Não trabalhei na segunda, na terça fui normalmente e os colegas faziam perguntas e eu respondia como tivesse sofrido apenas um assalto. Não contei para os meus pais porque não queria que eles sofressem, além do meu noivo e sogra que viram, contei apenas para minha irmã, uma prima que me indicou a ginecologista dela e uma amiga de trabalho que me deu apoio, eu não poderia ir ao médico da família, tinha medo dos meus pais saberem.

Fui sozinha à ginecologista, fiz todos os exames que ela pediu para ver se eu tinha pego alguma doença, graças a Deus deu tudo bem. Procurei seguir minha vida com aquela dor dentro de mim, eu só tinha 20 anos, me achava suja, que não tinha direito de ter filhos.

Eu sempre quis me casar virgem, numa igreja grande com véu de 3 metros. Meu noivo queria muito me ter mas me respeitava, até que um dia decidi me entregar, me preparei, fui ao ginecologista, comecei a tomar anticoncepcional, fomos ao Motel mas ele não teve coragem, posteriormente voltamos ao Motel e conseguimos, perdi a virgindade! Isso aconteceu poucos meses antes de eu sofrer o assalto. As pessoas que souberam, com exceção da amiga que perdi contato, nunca conversaram comigo sobre o ocorrido, elas não falavam e eu também não.

Imagem de pasja1000 por Pixabay

Durante anos não consegui falar disso, aos poucos e com muita dificuldade, a voz embargava, fui falando para uma pessoa, depois outra, até que consegui e consigo falar normalmente, sem problema algum. Já se passaram 39 anos.

Quando casei pensei que a minha saga tinha terminado, mero engano. Na primeira gravidez tive um sangramento e fiquei de repouso, afastada do trabalho. Um dia numa discussão meu marido me deu o primeiro tapa, na cara, eu deitada na cama, eu olhei nos olhos dele e disse que nunca mais iria amá-lo como antes.

A avó dele com mais de 80 anos, que me ajudava, assistiu e de joelhos pediu para ele prometer que nunca mais iria me bater, ele prometeu e cumpriu. Ela era o anjo na minha vida, me admirava muito pela minha luta, faleceu quando minha filha tinha um mês e meio de vida, só esperou ela nascer.

Certo dia eu o flagrei usando drogas, discutimos. Ele me dizia que só não me batia porque prometeu para a avó. Dois anos depois tive meu segundo filho. Pouco tempo depois ele esqueceu a promessa e começou a me bater, passei a revidar com o que estivesse na mão.

Nunca contei para ninguém, já fui trabalhar de olho roxo, sofria calada. Ele era ciumento, possessivo, eu não podia usar roupas decotadas, maquiagem, pegar carona e nem andar com homem.

Imagem de Vinson Tan ( 楊 祖 武 ) por Pixabay

Fui mulher, esposa, mãe e profissional guerreira, enquanto ele dormia, carro na garagem, eu fazia compras sozinha, pegava peso, levava os filhos ao pediatra de ônibus, trabalhava pra sustentar a casa e por aí vai.

Dez anos de casada, tivemos uma briga muito feia, ele enlouquecido, quebrou varias bebidas do bar que tínhamos, me tranquei no meu quarto com meus filhos de 6 e 8 anos, ele quase quebrou a porta, pulei a janela, liguei para o irmão dele e pedi socorro, que veio na minha casa, conversei com meu cunhado que ia me separar e ele levou meu marido para dormir na casa da mãe (meu sogro já tinha falecido há 3 anos e era muito bom pra mim).

No dia seguinte meu cunhado mandou a esposa dele ir na minha casa conversar comigo, dizer que meu cunhado pediu para eu não me separar, recusei, mantive firme no meu objetivo. Eu tinha acabado de ficar desempregada do meu primeiro emprego após 13 anos.

Contei para minha família os 10 anos de casada que apanhei na maioria dos anos, contratei minha amiga advogada, me separei do meu cunhado e não do marido. Levei quase um ano para meu marido assinar a separação porque ele somente assinou quando o irmão autorizou, quando eu abri mão de tudo, a casa que eu morava era herança dos avós do meu marido, eu não tinha direito, meu sogro tinha reformado a casa todinha para mim quando casei, com a concordância da minha sogra me colocaram para fora com meus filhos pequenos.

Imagem de Elias Sch. por Pixabay

Entreguei a casa e a pouca pensão que deveria pagar para as crianças nunca pagou, nunca pagou uma chupeta para um filho. Entreguei a casa, vendi um fogão para pagar a mudança com poucas coisas que levei. Fui morar com minha mãe e padrasto e minha mãe disse que ficaria com meus filhos se eu voltasse estudar e terminasse minha faculdade, feito, me formei!

Consegui emprego, comecei por baixo, passei a morar sozinha com meus filhos, pagava aluguel, escola particular, dei o melhor para meus filhos dentro das minhas possibilidades e eles sempre retribuíram.

Fui sendo promovida, trabalhei muito, em 6 meses já era encarregada e em 3 anos gerente, também trabalhei 13 anos nessa empresa.

Meu ex-marido me perseguiu por um tempo por onde eu passava, chegava cedo perto do meu trabalho me esperando, eu via, voltava, mudava o caminho e entrava por outra portaria que ele não conhecia.

Imagem de Janko Ferlic por Pixabay

Minha vida seguiu, Deus me abençoou com 2 filhos maravilhosos, excelente caráter, bem formados e empregados. Aprendi com a vida nunca olhar para trás, apenas seguir em frente que tudo se encaixa, se resolve e coisas boas virão mas com muita luta e trabalho. Sou uma mulher completa, resolvida e feliz!

Tudo que vejo na TV que as mulheres que apanham passam, como começa, os homens colocando elas para baixo, é exatamente assim, passei por tudo isso. Eu era nova, imatura, medo de perder o homem que amava, na época não tinha tinha as informações de hoje, se fosse dar queixa na policia era feio, sofri preconceito por ser mulher separada, algumas amizades se afastaram.

Depois de separada namorei bem, mas não quis casar de novo, me descobri como mulher, meu corpo, meu prazer.

Mulheres que sofrem agressões, físicas e/ou mentais, não tenham medo, falem para a família, amigos, conhecidos, vizinhos, não tenham vergonha,  denunciem para as autoridades locais! A gente não morre, renasce, se torna uma pessoa feliz!”

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2 comentários

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José Bomfim Alves de Oliveira 07.mar.2020 - 10:22

A luta continua! Não é simples bordão. É a atitude que mulheres e homens voltados para um mundo melhor devem tomar. Sempre denunciar, sempre estar solidário à vítima, fazer uma limpeza ética e moral, nenhuma chance pra agressores.

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Mª Aparecida Costa
Mª Aparecida Costa 11.mar.2020 - 05:48

Esta mulher é uma pessoa que conheço apenas pelas redes sociais já há algum tempo. Linda e sempre otimista, procura ver o melhor da vida. Para ela ter o relato de sua vida publicado significou muito. Ela me disse – “Se eu puder fazer apenas uma mulher refletir, este post já cumpri sua missão. Foram muitos os retornos para a publicação, foram muitos os corações alcançados. Obrigada meu amigo por participar deste nosso trabalho. Saúde, paz, amor, conquistas!

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