No último ano com o grupo, já reconhecida por meus estudos em cuidados paliativas, por meu dom de empatia e por meu comprometimento, acompanhava muitos pacientes em assistência domiciliar, indicada por meus chefes. Eram pessoas em estado já muito avançado do câncer, sem possibilidade de cura ou controle, recebiam tais cuidados em casa.
As experiências com as equipes de home care eram desgastantes, porque à época não se falava ou preparava-se os profissionais sobre cuidados paliativos.
Até que chegou à minha vida um rapaz, Marcelo, de 23 anos, com câncer avançado de intestino. A mãe dele exigiu que ele fosse cuidado em casa após alta hospitalar. Ela sabia da terminalidade dele e era um desejo dos dois ficar em casa. Então aceitei, lisonjeada.
Primeira visita: dor. Controlada em poucos dias deu lugar à sonolência. A doença foi avançando. Certo dia volto e vejo Marcelo com muita dor e muito medo. Abro minha maleta que pedi para os momentos finais. Só vejo medicamento para reanimação. Preciso de morfina para ele. Peço para o hospital que demora a chegar quase quatro horas. Aplico a medicação em Marcelo e ele finalmente dorme. A mãe de Marcelo me abraça e me agradece.
Entro no carro e a chuva cai torrencial. Choro torrencialmente, mas a chuva abafa o meu som no carro. Toca o telefone e é a técnica de enfermagem: Dra Ana? Acho que o Marcelo parou. Tenho que voltar para fazer o atestado de óbito. Será que sobrevivo a isso?A morte chegou durante a paz. Vejo a noite, olho o Céu. Parou de chover.
Durante à noite tive pesadelos.
Fiquei afastada 42 dias do trabalho e por fim pedi demissão.
Aos poucos a vida foi voltando ao normal.
O que aconteceu comigo?
Fadiga de compaixão.
A fadiga de compaixão ocorre preferencialmente com profissionais da saúde ou voluntários que têm como principal ferramenta de ajuda a empatia. Pessoas que lidam com tanto sofrimento que acabam por incorporar a dor que não lhes pertence. E ali estava eu, vivendo a maior dor da minha carreira, resultado do meu melhor dom: empatia. Ironia? E agora?
Esse texto é uma adaptação do livro “A morte é um dia que vale a pena viver” , da Dra Ana Cláudia Quintana Arantes que fala da sua experiência como médica com pacientes em fase terminal.
Como praticar, oferecer a empatia sem se envolver a ponto de querer se afastar das pessoas para evitar o próprio sofrimento?
Não vejo como uma pergunta tão simples de responder. Para mim que também sou profissional da saúde e que nem sempre as coisas saem como eu gostaria, traz sentimentos de angústia, frustração, desconforto, tristeza, luto. E enlutar no dia a dia não é uma tarefa fácil.
Como profissionais da saúde queremos resolver os problemas, mas a única coisa que resta, quando não podemos restabelecer a saúde do paciente é oferecer empatia.
Oferecer empatia, para mim, é como pegar alguém pelo braço gentilmente, caminhar lado a lado e observar as paisagens que o outro me aponta pelo caminho.
E há momentos que me separo do outro quando preciso oferecer empatia para mim mesma, oferecendo espaço para eu respirar e pensar sobre mim mesma.
Bárbara Bezerra
Cirurgiã Dentista, mãe do Gabriel e esposa do Fernando, estudiosa da comunicação não-violenta e que tem como hobby fazer caminhada e ler livros.
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