O motorista era um taxista ou um gigante?

por Bárbara Bezerra

Esta história aconteceu há mais ou menos vinte anos: eu estava a bordo do meu Chevette, “véio” de guerra, tentando contornar a praça Vilaboim, aqui em São Paulo, mas o trânsito intenso impedia que eu virasse à esquerda, único sentido possível.

Atrás de mim, um taxista inconformado com os meus quinze segundos de demora começou a buzinar impacientemente. Aqueles sons, no entanto, além de não possuírem o poder de fazer o tráfego fluir, ainda produziam o efeito colateral de me deixar cada vez mais nervoso.

As buzinadas foram se intensificando rapidamente e, como não surtiram efeito, o taxista passou a me xingar aos berros. Lembro-me de começar a suar de aflição. Após alguns segundos de suplício, consegui, imprudentemente, colocar a frente do carro uns centímetros adiante, criando espaço suficiente para que o táxi me cortasse pela esquerda, quase subindo na calçada.

Ao emparelhar comigo, em um breve e eterno instante, o motorista se deteve para me xingar mais e mais alto, com os olhos esbugalhados e fazendo gestos obscenos.

Fiquei desestruturado. As mãos e as pernas tremiam tanto que tive dificuldade de apertar o pedal da embreagem. Só bem mais tarde, já em casa, entendi que a tremedeira tinha um nome: medo.

A violência foi tamanha e tão gratuita que temi levar um tiro. Mas ali, enquanto a cena se desenrolava, eu não conseguia ter clareza de nada. Apenas observei, paralisado, o motorista passar por mim e estacionar logo ali, a poucos metros de distância, onde ficava o seu ponto de táxi.

Eu o vi descer sem demonstrar pressa ou urgência e caminhar calmamente até o centro da praça para se encontrar com outros taxistas. Assim que consegui romper o momento de congelamento que me aprisionava, entrei na famigerada avenida e fui tomado pelo impulso incontrolável de falar com aquela pessoa.

Sem ter consciência de porque fazia aquilo, me aproximei do meio-fio, parei o carro e abaixei o vidro. As pernas ainda tremiam e o coração explodia no peito. Quando o homem me viu, partiu em minha direção, bufando como um gladiador indo para o centro da arena. Ele era magro, mas, aumentado pelo meu medo, parecia um gigante. A partir daí, tudo acontece muito rápido. Ele se aproxima da minha janela, mas antes que fale qualquer coisa, tiro as mãos do volante permitindo que ele veja como estou tremendo.

Essa ação cria um fiapo de instante que o desarma. Aproveito a brecha para falar e a minha voz sai estranhamente calma para quem está chacoalhando daquele jeito: “Olha o estado em que estado estou, meu amigo. Nem sei direito porque parei aqui. Meu dia foi difícil e, de repente, sou xingado por um estranho. Não tive a intenção de atrasar o seu caminho ou prejudicar você. Nem te conheço. Eu só não estava conseguindo entrar na avenida”.

Neste momento, acontece algo totalmente imprevisível: como em um passe de mágica, vejo o gigante virar gente. Os olhos perdem a fúria e a tensão do rosto é substituída por uma expressão que me parece ser de alívio.

Reparo que ele tem rugas profundas que percorrem sua face de cima a baixo. É velho e me parece cansado. Sem dizer uma única palavra, ele encosta a testa no alto da minha janela e, para meu espanto, começa a chorar.

Um choro de balançar os ombros. Fico em silêncio. A cena em close na minha janela me emociona. O medo do gigante dá lugar à compaixão pelo homem.

Enquanto enxuga as lágrimas com as mãos e os ombros, ele me diz: “Me desculpe, meu amigo, me desculpe. Você sabe, São Paulo enlouquece a gente”. Pergunto, então, se ele passa muitas horas no trânsito, e ele responde: “O dia todo! O dia todo há mais de trinta anos. Isso não é vida”. Incontidamente, as lágrimas que descem pelo seu rosto deságuam, como afluentes, em um rio de palavras: a rotina de trabalhar cada vez mais para ganhar cada vez menos, as contas a pagar, o orgulho de pagar a faculdade dos filhos, o medo de adoecer e não poder trabalhar, o cansaço… muito cansaço.

“O que a gente vai fazer quando não aguentar mais trabalhar?” Balanço a cabeça, querendo dizer que o entendo. “Eu tenho o mesmo medo. Sou palhaço e não sei se vou me aposentar um dia.”

Essa história está no livro Ser bom não é ser bonzinho, do palhaço Cláudio Tebas.

É incrível como um ato de violência de uma pessoa pode esconder tanta vulnerabilidade, não é mesmo?

O problema não é a pessoa, mas a estratégia de violência utilizada que desconecta, que não dá clareza nas suas reais necessidades.

Bárbara Bezerra
Cirurgiã Dentista, mãe do Gabriel e esposa do Fernando, estudiosa da comunicação não-violenta e que tem como hobby fazer caminhada e ler livros.

Contatos:
Instagram – @partilhandosaberes2020
YouTube – Partilhando Saberes

Capa: Imagem de Benjamin Thomas por Pixabay

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2 comentários

JOSE B A OLIVEIRA 31.mar.2022 - 10:12

Ótima história. E uma boa receita para conter os “gigantes” nervosos do trânsito!

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Mª Aparecida Costa 06.abr.2022 - 18:57

Obrigada por sua participação. Grande abraço!

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