Por Reinaldo Felipe
Álcool, tabaco e trabalho duro sempre foram parceiros constantes de qualquer homem nas vilas rurais do Brasil. Poucos sempre foram os que, naqueles contextos, não “pitavam” ou não tomavam suas pingas.
Desde pequeno, os meninos já eram iniciados. Nhô Gusto Correia não fugia à regra. Aliás, gostava até demais desta regra, o que nunca o impediu de cumprir com todas as obrigações básicas impostas a um chefe de família.
E o que possa ter faltado nas ações do pai, sobrou no avô. Que avô ele foi! No outono de sua vida – talvez até para purgar alguma deficiência paterna e marital, não me importa a causa – ele soube dedicar aos netos atenção, carinho e amor de uma forma tão sincera e singela que isso marcou minha vida para sempre.
Augusto Batista dos Santos não tinha o sobrenome do pai, mas era filho legítimo. O que não foi feito no batismo, o povo se encarregou de fazer: incorporar o sobrenome paterno, e por ele chamá-lo. Ficou conhecido como Nhô Gusto Correia.
Era um caboclo rijo, típico resultado da miscigenação do nosso povo: a tez evidenciava traços africanos; o nariz ligeiramente adunco e os lábios finos denunciavam os genes europeus; a estatura e os cabelos fartos, lisos e negros, eram nativos.
Como ganha-pão, conviveu sempre com a incerteza dos agricultores despossuídos, lavrador eterno de terras alheias. Para trabalhar, pegava “empreitadas”, fazia acordos de “ameias”, agregava-se a alguma grande propriedade. Conseguiu, no fim da vida, aposentar-se pelo Funrural, embolsando mensalmente a humilhação de meio salário mínimo.
Quando as minhas primeiras memórias o alcança, ele ainda estava em pleno exercício de seus humildes ofícios. Era lenhador, e saía de casa pouco antes do sol: botas de borracha sete-léguas, embornal com a marmita e o café, e o machado afiado às costas.
Quando apontava de volta na curva da estradinha, faltava pouco para o sol ir embora. Eu corria ao seu encontro e lhe pedia a bênção, a qual ele me oferecia sempre com um sorriso.
Permitia que eu colocasse o seu machado nas minhas costas – àquela altura já sem o fio da manhã, o que não o impedia de fazer sempre as mesmas recomendações de cuidado. “Trabalhou muito hoje, vô?” – eu lhe perguntava por não ter mais o que dizer, e ele respondia em concordância com o sotaque da região: “Hoje tava ruim. Só cortei quatro metro”.
Ao entrar em casa, pendurava o chapéu e sentava-se na cozinha. Colocava o embornal sobre a mesa e dele saía, além da marmita vazia e da garrafa de guaraná arrolhada onde levara o café, as frutas mais doces que já provei: pêssegos e goiabas miudinhos, jabuticabas e nêsperas (que chamávamos de ameixa) graúdas, colhidas nos breves intervalos da lida apenas para agradar o neto.
Enquanto isso, minha avó já colocava sob os seus pés, no chão de terra batida, a bacia recuperada com um fundo de madeira que, quando encharcado, pesava quase uma tonelada. A água, que há muito aguardava no fogão a lenha, era despejada fumegando, e temperada com a água fria do poço.
Então ele iniciava, ali mesmo na cozinha, o seu ritual de ablução. Iluminado pela luz incerta da lamparina descalçava as botas de borracha, arregaçava as calças até os joelhos, despia-se da cintura para cima – mostrando alguma flacidez nos músculos outrora rijos – e se lavava com o sabão de cinzas, sempre nesta ordem: primeiro as mãos, depois o rosto e os cabelos, em seguida os braços e as axilas, e por último os pés.
Enxugava-se com a toalha de pano de saco, deixando o chão enlameado ao redor da bacia. Calçava um par de chinelas feitas de algum velho sapato recortado, sem os calcanhares, e vestia uma camisa remendada, porém limpa, mantendo a mesma calça com que trabalhara durante o dia e com a qual, certamente, trabalharia amanhã.
Aí já era hora de jantar, não sem antes ir até a prateleira que ficava atrás da porta, desarrolhar um litro de cachaça e tomar um generoso gole, me oferecendo o “fundinho” do copo.
Disso tudo eu me recordo por passar em sua casa quase todas as férias. Tive uma infância – embora sem privações de tudo que seja essencial – simples, sem luxos nem excessos. Nas férias escolares, minha mãe me levava em um domingo para a casa dos meus avós e, no próximo, me buscava e deixava a minha irmã.
Disso tudo eu me recordo, e de muito mais. Após o jantar, ele pitava em um cachimbinho de madeira ou de barro o fumo de corda pacientemente picado. Antes de dormir levava a lamparina até o quarto, pegava a violinha de pinho rústico com fitas verdes e vermelhas amarradas nas cravelhas – as cores de São Gonçalo – e sentava-se na beira da cama.
Eu me sentava ao seu lado e ele, com pouca perícia, mas com muita fé, entoava um latinório incompreensível – o mesmo que marcava o compasso de palmas e de pés nas festas de São Gonçalo, que eram chamadas de “função”.
Meu avô, periodicamente, recebia e organizava a “função de São Gonçalo” em sua casa, onde se comia arroz, feijão e farinha com “afogadão” de carne gorda de vaca e batatas ou mandioca, bebia-se muito café (quase um chá…), havia cantoria e os homens dançavam a catira.
Recordo também das vezes em que ele e minha avó iam nos visitar. Sapato Vulcabrás lustrado, calça de tergal, camisa, chapéu, guarda-chuva e uma blusinha de lã aberta na frente – estivesse frio ou não.
Levava-me uma penca de bananas realmente nanicas, recolhidas do seu próprio quintal e tão doces quanto às demais frutas do seu embornal. Se não havia banana, comprava no trem um saquinho de “manduim torrado”, como ele dizia. Jamais me deu a bênção de mãos abanando.
Eu me recordo de tudo isso, e de muito mais. Recordo também de seu cheiro de caboclo que, a despeito das precárias regras de higiene, nada tinha de desagradável: era uma mistura de tabaco com madeira de eucalipto ou de pinho, de fumaça de fogão a lenha com o cheiro que o capim-gordura exalava nos dias de sol forte.
Uma fragrância que eu jamais voltei a sentir em minha vida. Recordo dos calos e das veias grossas de suas mãos, que eu gostava de apalpar quando sentava em seu colo. Recordo – e até posso ouvir – a sua voz me acordando nas manhãs frias das férias de julho, me chamando para acompanhá-lo em sua frugal refeição matinal: café preto com farofa de farinha de milho.
Não me lembro, jamais, de ter recebido de meu avô, Nhô Gusto Correia, qualquer manifestação de desagrado ou de reprovação pelos meus atos, mesmo as traquinagens.
Não tenho recordação alguma de sua ira ou de seu destempero contra os seus netos, mesmo depois de ter bebido suas pinguinhas. Tenho comigo, isso sim, a imagem de seus gracejos, tirando a dentadura e fazendo caretas para nos divertir. Não me esqueço da forma pura e profunda com que ele amou os filhos dos seus filhos.
Com tristeza e saudade me recordo do brilho dos seus olhos sumindo aos poucos, baços pela catarata e pelo glaucoma. Não posso esquecer que um dia ele me disse: “Tem uma doença que é a mais ruim de todas, e é uma doença que não dói. É a doença de ficar cego, meu neto”.
Nhô Gusto Correia se foi quando faltava pouco para o meu filho chegar, e eu não tive oportunidade de lhe dizer que, mesmo cego, ele continuaria a ver pelos meus olhos, e pelos olhos dos seus bisnetos. Depois que o último brilho que ainda restava em seus olhos se apagou para sempre, não pude deixar de dar ao meu filho o seu nome de soberano, que ele tão humildemente sempre carregou.
Reinaldo Felipe
55 anos, professor de História da rede municipal de São Paulo. De vez em quando escreve crônicas, contos, poesias e relatos de memória. Um dia ainda pretende juntar tudo num livro, daqueles à moda antiga, de tinta e papel, que, além de lidos, também podem ser cheirados.
2 comentários
Muito bom, Maria Aparecida, informações preciosas para adubar a mente, a fim de que permaneça sempre jovem. Abraço quântico!
Gratidão Élio Meneguzzo! Por estar sempre presente, mesmo distante!